sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Contos Publicados - 004/2019


Foto: Francisco Ferreira

O Amor e Seus Reflexos

Ajustamos uns olhares de horas marcadas. Ela, tamponada na janela do quarto da sala, eu, de passagem apressada – modos de correição – como quem ia de compromissos e urgências. Mas qual? Pura vadiagem de menino-homem ainda frango, querendo ensaiar os primeiros cantos de galo.
Assim foi que dei os primeiros passos em terrenos de mulher, em barra de “barra de saia”, em negócios de fêmea. Conforme é muito fácil o percebimento, neste longe ainda não conhecia corpo e gosto de mulher, galalauzinho que eu era. Mas para aprender a ser homem basta o faro. Não carece professor, receita, mapa... nem bússola.
Passa tempo...
Tempo passa e aquilo engrossou o caldo feito mingau em fogo baixo e ganhou patentes e liberdades. A moça iniciou tecidos de muitas agulhas e teias, sentada à porta com os joelhos à mostra. Quem me visse zanzando ali e acolá dizia que eu estava em trabalhos de muitos cargos, cargas e encargos de fiscalização, tantas vezes perneava aquela rua, bem medida, aos passos lentos e curtos, rápidos e longos, com paradas estratégicas.  Certa vez deixei flor mimosa e sem espinhos, colhida na hora, feito bandeira, no mourão da cerca do quintal. Dia seguinte no lugar da flor, em bilhete perfumado, com florezinhas caprichosamente desenhadas e letra redondoza, a palavra: Bobo! – Quase nem acredito. Até hoje...
Num domingo de festas, padres e botinas lustrosas, na fila da comunhão, a moça deu três pancadinhas de dedos no meu cangote e falou:
--Licença!
Fiquei uma semana alisando o lugar que ela me tocou – como uma revoada de mil e mais mil borboletas – a mão da donzela.
Tempo passa...
Passa tempo e o perfeito das alegrias não foi ainda nascido para coração de homem. Pelo menos não para coração de homem pobre. A menina de meu bem querer se jogou de cabeça, trecos e tecidos, em noivado de supetão com um primo lá dela. Rendeu até falatório e coisa e tal. Ele, recém chegado da Mina de Morro Velho, amontado em besta brilhosa, bailarina e barulhenta e, carregando nas costas, além da corcunda, estabilidade de aposentadoria precoce, movida por mal sem cura de pleura, pulmão e fígado. Seco, amarelo e chiador feito peixe-tolo, mas com histórias de uns cobres sobrando na algibeira e ainda mais nos bancos. Diz-se que até talão de cheques. Arrebatou a moça e meu coração. Ela, para o altar e cama de cabeceira alta e, aquele, para o limbo dos corações e paixões desfeitas a força e fórceps. Bebi juras de vingança e morte em copos grandes, “amarrei o lote”, bambeei valentia de garrucha velha e enferrujada na cinta. Nem atirava mais, capaz que. Até que Zé Prefeito, velho sábio e cego de um olho, mas que enxergava mais que toda a nossa gente junta, chamou-me às falas e me segredou conselhos:
--Deixa estar que isto não dura um nada. Nem um mijinho de gato. O rapaz é roncolho e tem pulmão não. A moça larga logo. Ou, mais certo das certezas, é que fica viúva. Viúva e com os cobres do desbagado. Ai você aproveita.
Embirrei. Engoli e vomitei fel de mágoa. Quem que o cego velho pensava que eu fosse? Cachorro pidão? Tatu de cemitério? Anu branco? Matava! Matava e pronto! Mas, semana e meia, depois de mais cinco bebedeiras e explanação de raivas e iras sem fim, atrelei o caso na estaca do esquecimento.
Passa tempo...
Tempo passa e casamento marcado, casamento rezado. Nem bem mês e meio, me chegou por mãos de alcoviteira, carta da desposada prima do mandi. Sem perfumes e nem florezinhas, letras agarranchadas. Mas trazia propostas de gordas safadezas, num papel de embrulhar carne manchada de banha de porco. Isso, dizia:
“Segunda o marido viaja a negócio. Volta só na quarta. Vou fazer um buraco na cerca no fundo do quintal, debaixo do pé de coité e deixar a porta da cozinha só encostada.”
A última réstia de sol daquela segunda flagrou-me  feito lobisomem rondando os fundos da casa do casal, em busca dos fundos da moça. E, a primeira luz da terça-feira ainda me pegou na “rapação” com a mulher do roncador. Mas aquilo aumentou minha revolta: a moça reclamou de tristezas e saudades, amor e outras queixas. Desejei ligeiro e raivoso mil mortes dolorosas e lentas do rival, sem contudo, ser eu a segurar na mão da Pantasma que o levaria para as profundas.
Entretanto, na presença do regalo farto e fácil, degluti a rebelião e esbanjei na tarefa, de eito e empreitada, de sujar, nos lençóis da menina, o nome e a honra do sujeito ladrão dos amores da gente. Este gozo durou pouco mais de meio ano, porém.  Numa segunda, tarde da noite, o ofendido em honra chamou a mulher dele na porta da sala e eu, saí pela da cozinha... escapei por milagre e mira ruim, do tiro de garrucha que me relampejou na cara e a passou a centímetros de minha orelha esquerda que me deixou surdo por dias e mais dias e, meio mouco, até hoje.
Daí que estou até hoje, 30 anos depois e mais umas tantas quaresmas, correndo do roncolho, feito o diabo, da cruz. E o mandi, ao que me consta, contam e passam recibo, está sem pressa nenhuma de dar seus ossos.  Tempo passa...

Passa tempo. E o tempo é hoje, do agorinha mesmo. Soube deles por novidadeiro de minha terra. Diz que a moça tomou tanto gosto pela safadaria que nunca mais largou do ofício de enfeitar a testa do chiador e que o marido ainda não trabalhou na mira lá dele, já errou mais de dúzia e meia de tiros nos amantes de sua senhora.  Se é roncolho, só Deus, os médicos e a mulher é quem podem dizer. Mas, ao que tudo indica, a mulher é manina, pois nunca tiveram um filho. Nem dele e nem doutros. Estão felizes e em paz!

***

Bola Perdida

No campo de terra batida do bairro, muito novo ainda, descobriu que o drible, além de um momento mágico, era tudo de que precisava para se dar bem na vida, quer fosse para desvencilhar-se da marcação dos zagueiros e fazer o gol, quer fosse para fugir dos garotos maiores e cheios de más intenções...  Ou ainda para sair incólume em seus primeiros delitos: pequenos furtos nas quitandas, incursões aos quintais dos vizinhos e os tombos dados no comércio local. Mas jamais admitiu ser driblado e quem o fazia quase sempre se arrependia.
            Aos doze anos já era trombadinha tarimbado e cheio de ginga e, como na canção popular, Deus lhe dera pernas compridas e muita malícia, para correr atrás de bola e fugir da polícia. Antes de qualquer jogada de efeito nos campos de várzea, ou nos golpes aplicados, repetia para si:
           --Olha a dibra!
À medida que se safava das confusões ou das pancadas dos zagueiros tornava-se mais esperto, ambicioso e principalmente, abusado. Dos pequenos furtos saltou para ações mais ousadas e assaltos à mão armada, da lata de thiner e de cola evoluiu para drogas cada vez mais pesadas. Corpo magro, esguio, pernas compridas e sorriso farto, um expert na arte da finta... Na bola e na vida! Os mais velhos bem que tentaram lhe aconselhar a dar novo rumo à sua vida, mas em vão:
            --Deixa de malandragem e se emenda. Por que você não tenta o futebol? Leva tanto jeito...
Mas o futebol profissional não era para ele. Não para ele, indisciplinado por natureza, que não aceitava nenhum comando, desconhecia todas as normas e regras e era avesso às ordens de qualquer natureza. Não, ele nascera para o futebol de várzea e para a malandragem.
            Aos vinte anos já era bandido famoso e temido no estado, com cabeça a prêmio, na polícia, na milícia e entre bandidos rivais; porém, sempre se safando na base do drible e se gabando:
            --Não conheci zagueiro, nem bandido e nem polícia a quem eu não desse a dibra.
            Mas, como não há bem que sempre dure e nem mal, que não se acabe, e sempre atrás de morro, tem morro numa pelada de final de semana num campinho de terra da favela, apareceu um moleque de seus quatorze anos, muito parecido com ele: corpo mirrado, pernas muito finas e compridas e aquele sorriso malicioso de projeto de bandido. E, de repente, o garoto de posse da bola bem na frente da torcida, pedala, ginga para a esquerda e para a direita, passa o pé sobre a bola e lhe dá uma caneta, passa a bola entre suas pernas; pára, sorri despreocupado e maliciosamente escapa da pancada que quebraria as perninhas de saracura três potes. Mais três adversários são driblados e o garoto marca um belo gol de cobertura, para delírio dos torcedores.
            Após o jogo, o menino atrevido na mira. O soco na cara. O sangue escorrendo do nariz quebrado. O moleque no chão. Ele se volta senhor de si e do mundo, com “a suprema vaidade e o ego amoral dos grandes criminosos do mundo”; quando alguém lhe manda tomar cuidado, se vira: o garoto, ao contrário de que ele imaginava, já não está mais choramingando no chão e parte para cima dele como um marruá acuado. Ele tenta sair para a direita e o aço da lâmina lhe fere no flanco, para a esquerda e, novamente, é atingido: está na hora do drible de efeito, da jogada de craque – no campo e na vida -, da finta de corpo, da ginga. E grita:
            --Olha a dibra!
Mas sequer se meche, desta vez a zaga do destino se lhe antecipou ao lance e roubou-lhe a bola da vida. Tem apenas o tempo de ver o garoto recolher o canivete, pedalar sobre uma bola imaginária e desaparecer, correndo, no meio da multidão...

***

Chacina

Dois anos no exterior.
Nenhuma carta, e-mail, telefonema... Sequer uma mensagem!
Retornou.
Há 10 metros de casa o velho telefone público. Discou torcendo para que a mãe atendesse.
− Mamãe?
− Vitória? Meu Deus, é você? Estava morta de preocupação com você, já a acreditava morta. Mas se eu disser que sonhei com você hoje, que tinha voltado, você crê? Como você está? Tudo bem? Quando você volta?
− Sim mamãe, tá tudo bem! E o pai e meus irmãos?
A mãe se sobressaltou. “Vitória, perguntado pelo pai e os meninos. Será que está acontecendo alguma coisa?”
− Ah, minha filha o de sempre. Chegou bêbado e já foi dormir. Os meninos também! Mas se quiser falar com eles, eu os acordo.
− Não precisa, mamãe. Boa noite!
− Oh, filha. Depois de dois anos... Não desliga não... – mas já havia desligado.
Márcia ouviu baterem na porta. “Quem poderá ser a esta hora, meu Deus? Só podem ser os vizinhos pedindo alguma coisa emprestada. Nunca devolvem nada. Gente folgada!” – Abriu.
− Vitória? Mas eu falei com você há um minuto???
A moça apontou-lhe com a cabeça o telefone público do outro lado da rua e estendeu-lhe a mão. A mãe não se conteve e aninhou a filha nos braços, soluçando. Coisa estranha aquele abraço, já não se lembrava do contato com a mãe. Esquecera-se das suas formas, do seu cheiro. Aliás, jamais o conhecera. Gente era algo muito estranho e imprevisível. Retribuiu, sem emoção, o abraço. 
− Venha Vitória. Vou acordar o seu pai e os meninos. Eles hão de querer vê-la!
− Não precisa, mamãe. Amanhã os vejo. Minhas coisas ainda estão no meu quarto? Tô com sono. Vou me lavar e dormir.
− Mas o que é isso, menina? Vou esquentar a janta, você deve estar com fome.
“A mesma conversa fiada de sempre. Com ela ou com os irmãos era sempre a mesma coisa. Para a Velha Sádica bastava que os alimentasse com a sua comida requentada e sem tempero, feita sem nenhum amor e estava tudo bem! Desde que cozinhasse a comida chorada que o Velho Ordinário colocava dentro de casa e estava tudo bem. Desde que houvesse pão para os seus, o circo é que se danasse. E que se danassem todos aqueles que desejassem dela, algo mais. Isso já não bastava?
− Estou sem fome, não precisa. Obrigada, mamãe...
− Está bem. Você deve mesmo estar cansada. Ouvi dizer que no exterior vocês trabalham feito burro. Igual a escravos, que não tem tempo para nada. Você tá parecendo muito mais mirrada do que quando saiu daqui, mas deve ser a vida que tá levando, né mesmo? Mas agora que você tá aqui, vai recuperar as carnes e as cores rapidinho. Já já e tá corada de novo.
“Ah! A Velha Sádica destilando seu veneno. Pobre coitada. Quanto está enganada, mas se lhe faz bem, deixarei que pense deste jeito.”
− Pois é, mamãe, vá dormir, amanhã a gente se fala mais. Vai descansar... – um sorriso desdenhoso bailou no rosto de Vitória. “Vai descansar!”
Deitou-se sabendo que não iria dormir. Tão surreal aquela situação. Sentia que nunca fez parte daquilo, embora estivesse no seu quarto. O mesmo velho quarto, rodeada de suas velhas coisas, como em mais de vinte anos de sua vida. O guarda-roupa de portas amarradas e caindo para um lado; as mesmas bonecas mutiladas e de segunda-mão; a mesma cama barulhenta e fedendo a naftalina. Tudo igual! O que então não condizia, estava fora do lugar?  O que, naquele contexto, diferia e não se encaixava? Desde os cinco anos dormia sozinha naquele cômodo minúsculo e cheio de goteiras. Quente feito o inferno no verão e, no inverno, gelado. Desde que a mãe surpreendera Rildo a observando enquanto dormia, se masturbando. “Aquele porco!” Foi a primeira e única vez que a Velha Sádica saiu de sua letargia e tomara o seu partido. O menino ficou andando com dificuldades durante uns três dias, resultado da tunda de cabo de vassoura. O Velho Ordinário admoestou o filho, rindo:
− Qualquer uma. Mas sua irmã, não!
Mas surrou-a para que ela “tomasse modos de moça e não provocasse os rapazes!” Cinco anos! O que ela poderia saber?
Só poderia ser isto que não se encaixava: a ausência do medo.  Não obstante ao nojo que nutria pela família, não havia mais medo. “Que sensação maravilhosa é não sentir nenhum medo. Não me sobressaltar e tremer a cada barulho vindo do interior desta toca suja, a que chamam de casa.” Já que os barulhos do exterior jamais a preocuparam ou assustaram! “Eu poderia entrar no quarto de qualquer um deles e gritar: eu não tenho mais medo de vocês, ouviram? A nenhum de vocês. Nem ao Velho Ordinário, nem ao Porco do Rildo e nem ao Gílson, esta víbora mesquinha!” mas a hora ainda não chegara. Era muito cedo.
Era cedo para acordá-los com seu desabafo tardio e inoportuno, mas para matá-los, era precisamente o momento.
Na manhã seguinte, já longe dali, da família, apenas as manchetes do jornal.

Contos O AMOR E SEUS REFLEXOS, BOLA PERDIDA e CHACINA publicados na antologia CONTISTAS DO BECO - AUTORES DIVERSOS - pags. 56 a 67 - organização: MARIA JEREMIAS DOS SANTOS - Grupo Editorial BECO DOS POETAS E ESCRITORES Ltda - São Paulo (SP) - 2017.

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