Foto: Francisco Ferreira
O Amor e Seus Reflexos
Ajustamos
uns olhares de horas marcadas. Ela, tamponada na janela do quarto da sala, eu,
de passagem apressada – modos de correição – como quem ia de compromissos e
urgências. Mas qual? Pura vadiagem de menino-homem ainda frango, querendo
ensaiar os primeiros cantos de galo.
Assim
foi que dei os primeiros passos em terrenos de mulher, em barra de “barra de
saia”, em negócios de fêmea. Conforme é muito fácil o percebimento, neste longe
ainda não conhecia corpo e gosto de mulher, galalauzinho que eu era. Mas para
aprender a ser homem basta o faro. Não carece professor, receita, mapa... nem
bússola.
Passa
tempo...
Tempo
passa e aquilo engrossou o caldo feito mingau em fogo baixo e ganhou patentes e
liberdades. A moça iniciou tecidos de muitas agulhas e teias, sentada à porta
com os joelhos à mostra. Quem me visse zanzando ali e acolá dizia que eu estava
em trabalhos de muitos cargos, cargas e encargos de fiscalização, tantas vezes
perneava aquela rua, bem medida, aos passos lentos e curtos, rápidos e longos,
com paradas estratégicas. Certa vez
deixei flor mimosa e sem espinhos, colhida na hora, feito bandeira, no mourão
da cerca do quintal. Dia seguinte no lugar da flor, em bilhete perfumado, com
florezinhas caprichosamente desenhadas e letra redondoza, a palavra: Bobo! –
Quase nem acredito. Até hoje...
Num
domingo de festas, padres e botinas lustrosas, na fila da comunhão, a moça deu
três pancadinhas de dedos no meu cangote e falou:
--Licença!
Fiquei
uma semana alisando o lugar que ela me tocou – como uma revoada de mil e mais
mil borboletas – a mão da donzela.
Tempo
passa...
Passa
tempo e o perfeito das alegrias não foi ainda nascido para coração de homem.
Pelo menos não para coração de homem pobre. A menina de meu bem querer se jogou
de cabeça, trecos e tecidos, em noivado de supetão com um primo lá dela. Rendeu
até falatório e coisa e tal. Ele, recém chegado da Mina de Morro Velho,
amontado em besta brilhosa, bailarina e barulhenta e, carregando nas costas,
além da corcunda, estabilidade de aposentadoria precoce, movida por mal sem
cura de pleura, pulmão e fígado. Seco, amarelo e chiador feito peixe-tolo, mas
com histórias de uns cobres sobrando na algibeira e ainda mais nos bancos.
Diz-se que até talão de cheques. Arrebatou a moça e meu coração. Ela, para o
altar e cama de cabeceira alta e, aquele, para o limbo dos corações e paixões
desfeitas a força e fórceps. Bebi juras de vingança e morte em copos grandes,
“amarrei o lote”, bambeei valentia de garrucha velha e enferrujada na cinta.
Nem atirava mais, capaz que. Até que Zé Prefeito, velho sábio e cego de um
olho, mas que enxergava mais que toda a nossa gente junta, chamou-me às falas e
me segredou conselhos:
--Deixa
estar que isto não dura um nada. Nem um mijinho de gato. O rapaz é roncolho e
tem pulmão não. A moça larga logo. Ou, mais certo das certezas, é que fica
viúva. Viúva e com os cobres do desbagado. Ai você aproveita.
Embirrei.
Engoli e vomitei fel de mágoa. Quem que o cego velho pensava que eu fosse?
Cachorro pidão? Tatu de cemitério? Anu branco? Matava! Matava e pronto! Mas,
semana e meia, depois de mais cinco bebedeiras e explanação de raivas e iras
sem fim, atrelei o caso na estaca do esquecimento.
Passa
tempo...
Tempo
passa e casamento marcado, casamento rezado. Nem bem mês e meio, me chegou por
mãos de alcoviteira, carta da desposada prima do mandi. Sem perfumes e nem
florezinhas, letras agarranchadas. Mas trazia propostas de gordas safadezas,
num papel de embrulhar carne manchada de banha de porco. Isso, dizia:
“Segunda
o marido viaja a negócio. Volta só na quarta. Vou fazer um buraco na cerca no
fundo do quintal, debaixo do pé de coité e deixar a porta da cozinha só
encostada.”
A
última réstia de sol daquela segunda flagrou-me
feito lobisomem rondando os fundos da casa do casal, em busca dos fundos
da moça. E, a primeira luz da terça-feira ainda me pegou na “rapação” com a
mulher do roncador. Mas aquilo aumentou minha revolta: a moça reclamou de
tristezas e saudades, amor e outras queixas. Desejei ligeiro e raivoso mil mortes
dolorosas e lentas do rival, sem contudo, ser eu a segurar na mão da Pantasma
que o levaria para as profundas.
Entretanto,
na presença do regalo farto e fácil, degluti a rebelião e esbanjei na tarefa,
de eito e empreitada, de sujar, nos lençóis da menina, o nome e a honra do
sujeito ladrão dos amores da gente. Este gozo durou pouco mais de meio ano,
porém. Numa segunda, tarde da noite, o
ofendido em honra chamou a mulher dele na porta da sala e eu, saí pela da cozinha...
escapei por milagre e mira ruim, do tiro de garrucha que me relampejou na cara
e a passou a centímetros de minha orelha esquerda que me deixou surdo por dias
e mais dias e, meio mouco, até hoje.
Daí
que estou até hoje, 30 anos depois e mais umas tantas quaresmas, correndo do
roncolho, feito o diabo, da cruz. E o mandi, ao que me consta, contam e passam
recibo, está sem pressa nenhuma de dar seus ossos. Tempo passa...
Passa
tempo. E o tempo é hoje, do agorinha mesmo. Soube deles por novidadeiro de
minha terra. Diz que a moça tomou tanto gosto pela safadaria que nunca mais
largou do ofício de enfeitar a testa do chiador e que o marido ainda não
trabalhou na mira lá dele, já errou mais de dúzia e meia de tiros nos amantes
de sua senhora. Se é roncolho, só Deus,
os médicos e a mulher é quem podem dizer. Mas, ao que tudo indica, a mulher é
manina, pois nunca tiveram um filho. Nem dele e nem doutros. Estão felizes e em
paz!
***
Bola Perdida
No campo de terra batida do bairro, muito novo
ainda, descobriu que o drible, além de um momento mágico, era tudo de que
precisava para se dar bem na vida, quer fosse para desvencilhar-se da marcação
dos zagueiros e fazer o gol, quer fosse para fugir dos garotos maiores e cheios
de más intenções... Ou ainda para sair incólume em seus primeiros
delitos: pequenos furtos nas quitandas, incursões aos quintais dos vizinhos e
os tombos dados no comércio local.
Mas jamais admitiu ser driblado e quem o fazia quase sempre se arrependia.
Aos
doze anos já era trombadinha tarimbado e cheio de ginga e, como na canção
popular, Deus lhe dera pernas compridas e
muita malícia, para correr atrás de bola e fugir da polícia. Antes de
qualquer jogada de efeito nos campos de várzea, ou nos golpes aplicados,
repetia para si:
--Olha
a dibra!
À medida que se safava das confusões ou das
pancadas dos zagueiros tornava-se mais esperto, ambicioso e principalmente,
abusado. Dos pequenos furtos saltou para ações mais ousadas e assaltos à mão
armada, da lata de thiner e de cola evoluiu para drogas cada vez mais pesadas.
Corpo magro, esguio, pernas compridas e sorriso farto, um expert na arte da finta... Na bola e na vida! Os mais velhos bem
que tentaram lhe aconselhar a dar novo rumo à sua vida, mas em vão:
--Deixa
de malandragem e se emenda. Por que você não tenta o futebol? Leva tanto
jeito...
Mas o futebol profissional não era para ele. Não
para ele, indisciplinado por natureza, que não aceitava nenhum comando,
desconhecia todas as normas e regras e era avesso às ordens de qualquer
natureza. Não, ele nascera para o futebol de várzea e para a malandragem.
Aos
vinte anos já era bandido famoso e temido no estado, com cabeça a prêmio, na
polícia, na milícia e entre bandidos rivais; porém, sempre se safando na base
do drible e se gabando:
--Não
conheci zagueiro, nem bandido e nem polícia a quem eu não desse a dibra.
Mas,
como não há bem que sempre dure e nem
mal, que não se acabe, e sempre atrás
de morro, tem morro numa pelada de final de semana num campinho de terra da
favela, apareceu um moleque de seus quatorze anos, muito parecido com ele:
corpo mirrado, pernas muito finas e
compridas e aquele sorriso malicioso de projeto de bandido. E, de repente, o
garoto de posse da bola bem na frente da torcida, pedala, ginga para a esquerda e para a direita, passa o pé sobre a
bola e lhe dá uma caneta, passa a
bola entre suas pernas; pára, sorri despreocupado e maliciosamente escapa da
pancada que quebraria as perninhas de
saracura três potes. Mais três adversários são driblados e o garoto marca
um belo gol de cobertura, para delírio dos torcedores.
Após
o jogo, o menino atrevido na mira. O soco na cara. O sangue escorrendo do nariz
quebrado. O moleque no chão. Ele se volta senhor de si e do mundo, com “a suprema vaidade e o ego amoral dos
grandes criminosos do mundo”; quando alguém lhe manda tomar cuidado, se
vira: o garoto, ao contrário de que ele imaginava, já não está mais
choramingando no chão e parte para cima dele como um marruá acuado. Ele tenta sair para a direita e o aço da lâmina lhe
fere no flanco, para a esquerda e, novamente, é atingido: está na hora do
drible de efeito, da jogada de craque – no campo e na vida -, da finta de
corpo, da ginga. E grita:
--Olha
a dibra!
Mas sequer se meche, desta vez a zaga do destino
se lhe antecipou ao lance e roubou-lhe a bola da vida. Tem apenas o tempo de
ver o garoto recolher o canivete, pedalar
sobre uma bola imaginária e desaparecer, correndo, no meio da multidão...
***
Chacina
Dois anos no exterior.
Nenhuma carta, e-mail, telefonema... Sequer uma
mensagem!
Retornou.
Há 10 metros de casa o velho telefone público.
Discou torcendo para que a mãe atendesse.
− Mamãe?
− Vitória? Meu Deus, é você? Estava morta de
preocupação com você, já a acreditava morta. Mas se eu disser que sonhei com
você hoje, que tinha voltado, você crê? Como você está? Tudo bem? Quando você
volta?
− Sim mamãe, tá tudo bem! E o pai e meus irmãos?
A mãe se sobressaltou. “Vitória, perguntado pelo
pai e os meninos. Será que está acontecendo alguma coisa?”
− Ah, minha filha o de sempre. Chegou bêbado e
já foi dormir. Os meninos também! Mas se quiser falar com eles, eu os acordo.
− Não precisa, mamãe. Boa noite!
− Oh, filha. Depois de dois anos... Não desliga
não... – mas já havia desligado.
Márcia ouviu baterem na porta. “Quem poderá ser
a esta hora, meu Deus? Só podem ser os vizinhos pedindo alguma coisa
emprestada. Nunca devolvem nada. Gente folgada!” – Abriu.
− Vitória? Mas eu falei com você há um minuto???
A moça apontou-lhe com a cabeça o telefone
público do outro lado da rua e estendeu-lhe a mão. A mãe não se conteve e
aninhou a filha nos braços, soluçando. Coisa estranha aquele abraço, já não se lembrava
do contato com a mãe. Esquecera-se das suas formas, do seu cheiro. Aliás,
jamais o conhecera. Gente era algo muito estranho e imprevisível. Retribuiu,
sem emoção, o abraço.
− Venha Vitória. Vou acordar o seu pai e os
meninos. Eles hão de querer vê-la!
− Não precisa, mamãe. Amanhã os vejo. Minhas
coisas ainda estão no meu quarto? Tô com sono. Vou me lavar e dormir.
− Mas o que é isso, menina? Vou esquentar a
janta, você deve estar com fome.
“A mesma conversa fiada de sempre. Com ela ou
com os irmãos era sempre a mesma coisa. Para a Velha Sádica bastava que os
alimentasse com a sua comida requentada e sem tempero, feita sem nenhum amor e
estava tudo bem! Desde que cozinhasse a comida chorada que o Velho Ordinário
colocava dentro de casa e estava tudo bem. Desde que houvesse pão para os seus,
o circo é que se danasse. E que se danassem todos aqueles que desejassem dela,
algo mais. Isso já não bastava?
− Estou sem fome, não precisa. Obrigada,
mamãe...
− Está bem. Você deve mesmo estar cansada. Ouvi
dizer que no exterior vocês trabalham feito burro. Igual a escravos, que não
tem tempo para nada. Você tá parecendo muito mais mirrada do que quando saiu
daqui, mas deve ser a vida que tá levando, né mesmo? Mas agora que você tá
aqui, vai recuperar as carnes e as cores rapidinho. Já já e tá corada de novo.
“Ah! A Velha Sádica destilando seu veneno. Pobre
coitada. Quanto está enganada, mas se lhe faz bem, deixarei que pense deste
jeito.”
− Pois é, mamãe, vá dormir, amanhã a gente se
fala mais. Vai descansar... – um sorriso desdenhoso bailou no rosto de Vitória.
“Vai descansar!”
Deitou-se sabendo que não iria dormir. Tão
surreal aquela situação. Sentia que nunca fez parte daquilo, embora estivesse
no seu quarto. O mesmo velho quarto, rodeada de suas velhas coisas, como em
mais de vinte anos de sua vida. O guarda-roupa de portas amarradas e caindo
para um lado; as mesmas bonecas mutiladas e de segunda-mão; a mesma cama
barulhenta e fedendo a naftalina. Tudo igual! O que então não condizia, estava
fora do lugar? O que, naquele contexto, diferia e não se encaixava? Desde
os cinco anos dormia sozinha naquele cômodo minúsculo e cheio de goteiras.
Quente feito o inferno no verão e, no inverno, gelado. Desde que a mãe
surpreendera Rildo a observando enquanto dormia, se masturbando. “Aquele
porco!” Foi a primeira e única vez que a Velha Sádica saiu de sua letargia e
tomara o seu partido. O menino ficou andando com dificuldades durante uns três
dias, resultado da tunda de cabo de vassoura. O Velho Ordinário admoestou o filho,
rindo:
− Qualquer uma. Mas sua irmã, não!
Mas surrou-a para que ela “tomasse modos de moça
e não provocasse os rapazes!” Cinco anos! O que ela poderia saber?
Só poderia ser isto que não se encaixava: a
ausência do medo. Não obstante ao nojo que nutria pela família, não
havia mais medo. “Que sensação maravilhosa é não sentir nenhum medo. Não me
sobressaltar e tremer a cada barulho vindo do interior desta toca suja, a que
chamam de casa.” Já que os barulhos do exterior jamais a preocuparam ou
assustaram! “Eu poderia entrar no quarto de qualquer um deles e gritar: eu não
tenho mais medo de vocês, ouviram? A nenhum de vocês. Nem ao Velho Ordinário,
nem ao Porco do Rildo e nem ao Gílson, esta víbora mesquinha!” mas a hora ainda
não chegara. Era muito cedo.
Era cedo para acordá-los com seu desabafo tardio
e inoportuno, mas para matá-los, era precisamente o momento.
Na manhã seguinte, já longe dali, da família,
apenas as manchetes do jornal.
Contos O AMOR E SEUS REFLEXOS, BOLA PERDIDA e CHACINA publicados na antologia CONTISTAS DO BECO - AUTORES DIVERSOS - pags. 56 a 67 - organização: MARIA JEREMIAS DOS SANTOS - Grupo Editorial BECO DOS POETAS E ESCRITORES Ltda - São Paulo (SP) - 2017.
Lindos adorei
ResponderExcluirLindo amei
ExcluirObrigado. Volte sempre. Abraços!
ExcluirGostei dos três, mais o que mais me chamou atenção foi o Amor e seus reflexos.
ResponderExcluirObrigado, Edilena! Gosto igual de tudo o que escrevo,mas esse tem algo especial para mim. Abraços.
ExcluirLindos poemas...
ResponderExcluirObrigado. Volte sempre. Abraços!
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